quinta-feira, 3 de abril de 2014

O livro “Língua de Eulália” de Marcos Bagno, contém 209 páginas, 21 capítulos, editora contexto. Contextualiza a linguagem formal com a linguagem popular.          
A obra de Bagno conta a história de três estudantes universitárias dos cursos de Psicologia,Letras e Pedagogia.
Língua de Eulália
                           As três são professoras do curso primário no mesmo colégio de São Paulo. (Pág 9) as estudantes resolveram passar as férias em Atibaia S. Paulo, na casa da professora Irene. Professora de língua portuguesa e lingüística, até se aposentar. Isso tem uns cinco anos. Mas ela mora aqui em Atibaia já faz mais de vinte. Ia para Campinas todo dia trabalhar de manhã e voltava à noite Ela se aposentou da universidade, mas continua trabalhando. Aliás, acho que hoje em dia ela trabalha mais do que quando era professora. Ela continua estudando, pesquisando, escrevendo. Toda vez que venho aqui ela comenta sobre algum artigo que uma revista encomendou, algum livro que está preparando, coisas assim.Lá na faculdade, quando comento com os professores que sou sobrinha de Irene Amaggio, todos se desdobram em elogios. Ela é muito respeitada comenta Vera com as colegas.
                           Quando a Eulália foi trabalhar com tia Irene, ela não sabia ler nem escrever Minha tia não quis saber daquilo: disse que nunca ia admitir na casa dela uma pessoa analfabeta. Começou a dar aulas á noite para a Eulália. A Eulália foi trazendo algumas conhecidas, estas foram trazendo mais gente, e quando minha tia viu estava dando aula para umas vinte pessoas, todas adultas, maioria mulheres que trabalhavam nas casas do bairro, onde ela mora. Imaginem que ela trabalhava na universidade o dia todo e quando chegava ainda tinha que dar aula á noite. Depois que se aposentou, ficou mais fácil. Mas agora estão todos de férias, porque ninguém é de ferro. (pág.10/11). A Eulália é um poço sem fundo de conhecimento e sabedoria. Todo dia aprendo uma coisa nova com ela. Até pode ser comenta Emília enquanto as quatro se sentam num grande banco de madeira sob um caramanchão. __Mas ela fala tudo errado. Isso para mim estraga qualquer sabedoria. Ela disse” os probrema”, “fósfro”,”môio ingrês”... A fala de Eulália não é errada: é diferente. É o português de uma classe social diferente da nossa, só isso _explica Irene, é errado dentro  das regras da gramática que se aplicam ao português que você fala, diz Irene. Mas na variedade não-padrão falada pela Eulália essas regras não funcionam. (pág. 13/14/15). Isso quer dizer que aquilo  que a gente chama, por comodidade, de português não é  um bloco compacto, sólido e firme, mas sim um conjunto de “coisas” aparentadas entre si, mas com algumas diferenças. Essas “coisas” são chamadas variedades.(pág.19)’
                              A língua também fica diferente quando é falada por um homem ou por uma mulher, por uma criança ou por um adulto, por uma pessoa alfabetizada ou por uma não alfabetizada, por uma pessoa de classe alta ou uma pessoa  de classe média ou baixa, por um morador da cidade e por um morador do campo e assim por diante. Temos então, ao lado das variedades geográficas, outros tipos de variedades: de gênero, socioeconômicas, etárias, de nível de instrução, urbanas, rurais etc. Cada pessoa tem a sua língua própria e exclusiva, mas não pode deixar que ela a separe da comunidade em que está inserida. (pág. 20/21). A norma padrão é aquele modelo ideal de língua que deve ser usado pelas autoridades, pelos órgãos oficiais, pelas pessoas cultas, pelos escritores e jornalistas, aquele que deve ser ensinado nas escolas.  Os autores de livros didáticos preparam seus manuais escolares pensando em estratégias pedagógicas eficazes para que as crianças aprendam a norma padrão. (pág. 22/23)
                                   No momento em que se estabelece uma norma-padrão, ela ganha tanta importância e tanto prestígio social que todas as demais variedades são  consideradas” impróprias”,”feias”,”erradas”,”deficientes”,”pobres”, e esta norma-padrão passa ser designada com o nome da língua, como se ela fosse a única representante legítima e legal dos falantes desta língua.
                                O português é a língua da grande maioria pobre e dos analfabetos do nosso povo. É também, consequentemente, a língua das crianças pobres e carentes  que freqüentam as escolas públicas. Por ser  utilizados por pessoas de classes sociais  desprestigiadas, marginalizadas, oprimidas pela terrível injustiça social que impera no Brasil, país que tem a pior distribuição  da riqueza nacional em todo o mundo,o PNP é vítima dos mesmos preconceitos que pesam sobre essas pessoas. Ele é considerado “feio”,”deficiente”,”pobre”,”errado”,”rude”,”tosco”,”estropiado”. Esses preconceitos fazem com que criança que chega á escola falando o PNP seja considerada uma “deficiente “lingüística,ela simplesmente fala uma língua diferente daquela que é ensinada na escola. E não estamos falando apenas das “aulas de português”, mas de todas as disciplinas lecionadas na escola. Sim porque todo professor é professor de língua, já que ele se serve da língua como meio de transmissão dos conteúdos que lhes cabe ensinar, as variedades não-padrão tem de ser feita em todos os campos da educação, sendo uma tarefa de todos e não apenas dos professores de língua  portuguesa. (pág28/29). No entanto, é preciso deixar uma coisa bem clara: existem muito mais semelhanças do que diferenças entre as variedades do português do Brasil.(pág37). Aquilo que parece “errado” ou “estranho” no português não- padrão é na verdade resultado de tendências muito antigas na língua, que são refreadas, reprimidas pela educação formal, pelas regras da linguagem literária, oficial, escrita, mas que encontram livre curso na boca do povo. (pág113).
                          No Brasil, como já repeti várias vezes, a força da escola é muito pequena, temos 60 milhões de analfabetos plenos e funcionais, isto é gente que aprendeu a ler e a escrever, mas não ficou na escola tempo suficiente para desenvolver essas habilidades. Nosso sistema de ensino público é classificado entre os piores do mundo. Se é verdade que o padrão lingüístico será sempre um ideal, inatingível na prática em sua totalidade, também é verdade que a escola deveria se esforçar para que esse padrão absorvesse uma série de usos lingüísticos novos perfeitamente assimilados pelos falantes cultos, já consagrados até na literatura dos melhores escritores, é preciso que dentro das escolas haja espaço para o máximo possível de variedades lingüísticas: urbanas, rurais, cultas, não-cultas, faladas, escritas, modernas.(pág172/173). E, ao mesmo tempo proponho a valorização dos usos lingüísticos não-padrão, sobretudo porque a língua que uma pessoa fala, a língua que ela aprendeu com sua família e com sua comunidade, a língua que ela usa para falar consigo mesma, para pensar, para expressar seus sentimentos, suas crenças e emoções, faz parte da identidade dessa pessoa, é como se a língua fosse a pessoa mesma.(pág188). É claro que poderíamos continuar esta lista,mas acho que estes poucos princípios já servem de base para construirmos uma nova proposta de abordagem e de tratamento dos problemas causados na escola e na vida pelas diferenças entre a norma-padrão e a variedades não-padrão.
                           A humanidade já passou por experiências terríveis o bastante, principalmente no ultimo século para começar  a aprender que a intolerância    a inflexibilidade , o fanatismo, o desrespeito pelo diferente não levam a lugar nenhum, a não ser à violência e à destruição. É claro que não podemos modificar o mundo, transformar a mente  de todas as pessoas, mas podemos começar a dar nossa pequena contribuição, tornando mais claro e respirável o ambiente em que nos movemos diariamente. Afinal, basta uma pequena semente para fazer brotar e crescer  uma árvore enorme, que dará muita sombra, flores perfumadas e frutos saborosos. Quem sabe cada um de nós não é a generosa jardineira que vai plantar e regar com paciência e amor esta pequena semente? Irene percebe que Eulália se afastou um pouco para comprar pipoca para os netos. Aproveita a chance para dizer:
                           Quero fazer uma surpresa para Eulália, diz Irene,  estou pensando em dar ao livro o título de “A Língua de Eulália”, afinal, foi observando a variedade lingüística dela que me veio a idéia de estudar assunto. E o título tem um detalhezinho linguístico interessante, ainda por cima – revela Irene.__O nome Eulália, em grego, quer dizer “a que fala bonito, a que fala bem, a que fala certo”. Não é uma delicia? Eulália e os netos se aproximam para as despedidas. Emília e Sílvia insistem para que todos vão visitá-las em São Paulo.

                           As três entram no ônibus, que não demora a partir. Na plataforma da rodoviária. Irene fica acenando com o envelope da editora na mão e um sorriso a iluminar seu rosto. (pág. 206/208).

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